O Globo: Romário, craque na bola e nas polêmicas

FALTAM 60 DIAS

Maior responsável pelo título do tetracampeonato mundial do Brasil, Baixinho acumulou títulos com as centenas de gols marcados e brigas com dirigentes e treinadores por onde passou

João máximo

Romário é um grande personagem. Longe da bola, um homem tão vivo, inteligente, franco, impetuoso, destemido, polêmico e, de certo modo, único, quanto foi o craque em campo. Há quem não veja nada desse craque no deputado federal que, como se diz, não tem papas na língua. Mas a semelhança existe. É claro que o brilho de sua trajetória como jogador de futebol jamais será alcançado pelo político. Até porque a dimensão de sua história uma história de sucesso poucas vezes, se é que alguma, foi alcançada por um jogador de sua geração. A vivacidade, a inteligência, a franqueza, o destemor e a polêmica são o que aproxima um do outro.

Romário atuou em duas Copas do Mundo e chegou a estar cotado para mais duas. Em todas elas, houve polêmica. Na de 1990, na Itália, uma contusão o impediu de ser o que se esperava que fosse. Jogou apenas um tempo na estreia contra a Escócia e depois ousou dispensar os serviço médicos da CBF para ser cuidado pelo terapeuta Filé. O alto-comando da seleção fez cara feia. E certamente só o manteve nos planos para a próxima Copa porque, pensando bem, ele era Romário.

No caminho para a Copa dos EUA, polêmica ainda maior. Em 1993, até a semana que antecedeu a partida com o Uruguai, no Maracanã, decisiva das eliminatórias, Romário era nome proibido de se pronunciar na Granja Comary, onde a seleção treinava e se concentrava. O motivo é que ele continuava sendo Romário. No caso, não o craque, mas o moço impetuoso e destemido que já então não tinha papas na língua. A causa foi um amistoso com a Alemanha, dez meses antes, no Beira-Rio. Convocado, o atacante do PSV Eindhoven viajou 17 horas de Amsterdã a Porto Alegre. Na hora do jogo, Carlos Alberto Parreira escalou Careca e deixou Romário no banco (só entraria aos 22 minutos do segundo tempo, no lugar de Careca). Romário não gostou. Pior, ficou tão furioso que perdeu a cabeça numa discussão com Zagallo, auxiliar de Parreira, ofendendo-o de uma maneira que a comissão técnica considerou indesculpável. Foi banido da seleção.

E assim foi até a semana da partida com o Uruguai. Durante toda a irregular campanha brasileira para assegurar a ida aos Estados Unidos, a pergunta que se repetia, nas entrevistas com Parreira, tinha o mesmo tom: “Por que não convoca o Romário?” E no mesmo tom era a resposta: “Só falo dos jogadores que convoquei, nunca dos não convocados” Chegada a hora da decisão, Parreira, Zagallo, os dirigentes, todos, trataram de repensar suas verdades.

O clima era mesmo de decisão, e nervosa. Certamente os homens que dirigiam a seleção juntaram informações lembranças da derrota de 50 para o mesmo adversário de agora, o reconhecimento de que seleção atual ainda não acertara, a repercussão que teria o Brasil fora da Copa pela primeira vez e, mais que tudo, o fato de Romário estar sendo Romário na Europa, agora no Barcelona. E o convocaram. Para marcar os dois gols da vitória sobre os uruguaios, dando assim o primeiro grande passo para, dali a um ano, ser o craque da Copa e jogador decisivo na tão esperada conquista do tetra.

Polêmica também em 1998, quando Romário foi cortado em Paris, sob a alegação de não estar bem fisicamente. Romário viu na decisão de Zagallo e de seu assessor Zico sinais de ressentimentos (anos antes, numa entrevista, Romário se referira a Zico como “um perdedor”). Em 2002, quando o povo e até o presidente da República o queriam na seleção, ele se viu outra vez preterido, agora por Felipe Scolari. Como sempre, reclamou. Tinha 36 anos e estava “em forma” A campanha do penta acabou dando razão ao técnico.

De qualquer forma, foi mesmo uma carreira de sucesso. Romário deve tudo ao seu futebol, modelo de atacante de área, preciso, desconcertante no drible curto, oportuno, simplificador, pensamento e ação em alta velocidade. Sucesso na seleção e nos clubes que defendeu. Bicampeão carioca e campeão brasileiro pelo Vasco, duas vezes carioca pelo Flamengo, campeão na Espanha e na Holanda, seis vezes artilheiro do Carioca e três do Brasileiro. Somam-se a isso mais de 20 troféus de “melhor do ano” incluindo os concedidos pela Fifa e por “France Footbal” (mas terá, mesmo, marcado mais de mil gols, ou entram nessa conta os conseguidos em jogos não oficiais?).

O importante é que tudo isso teve a acompanhálo a imagem de garoto rebelde, desobediente, brigão, carismático e, talvez o mais importante, orgulhoso de suas origens (ou do modo como o esforço próprio o fez superá-las). Romário nasceu pobre na favela do Jacarezinho e aos 3 anos foi para a Vila da Penha. O modo como profere, quase com orgulho, a palavra “favela” (preferindo-a à alternativa “comunidade”), diz bem de seu temperamento e sua franqueza. Ter chegado tão alto, vindo de tão baixo, para ele é mais que uma vitória. O homem, como o jogador, não tem medo de nada. Nem de parecer politicamente incorreto ao defender o vascaíno Eurico Miranda, pondo acima das diferenças a fidelidade que a amizade impõe. Como também não teve medo de ser o primeiro súdito a fustigar o Rei por suas declarações no mínimo discutíveis. Frase sua que entrou para a história: “Pelé, calado, é um poeta”

CRITICAS PARA FIFA E CBF

Atleta, na acepção da palavra, Romário nunca foi. Sua vida fora do campo era a de um convicto antiprofissional. Festas, saídas noturnas, pouco treino, muito futevôlei, futebol de praia, papo com os amigos. Nisso, como em quase tudo, é surpreendente. Da mesma forma que as colunas de fofocas o crucificavam como marido nada exemplar, a declaração de amor e apoio irrestrito à filha com Síndrome de Down comoveram até os mais descrentes e deu exemplo para muitos pais.

Eleito em 2010 deputado federal pelo Rio, como o sexto mais votado no estado, surpreendeu. Os que esperavam desempenho parecido com o de outros jogadores, alçados pela popularidade à condição de representantes do povo em câmaras e assembléias, Romário leva seu mandato à sério. Enquanto, por exemplo, Bebeto, seu companheiro de ataque no tetra, que atua para que José Maria Marin ganhe medalhas oficiais, ele, Romário, dedica-se a causas mais nobres. É um deputado que diz sempre o que quer dizer. O esporte, o futebol em particular, é sua bandeira. Rebate com veemência as declarações comprometidas de Pelé, do próprio Bebeto e de Ronaldo Fenômeno, para quem “não se faz Copa com hospitais” Atira nas lideranças da CBF, a anterior, a atual e a futura. O responsável por esta última o processa, perde e leva o deputado a bendizer sua imunidade. Romário cobra apuração dos gastos na construção de estádios e, olhando à frente, exige que se saiba como age o Comitê Olímpico Brasileiro com vistas a 2016. Em sua opinião, a Fifa é um antro de ladrões. Chama o presidente Joseph Blatter de nomes mais feios e põe no mesmo saco o secretario Jêrome Valcke. Ao contrário do goleador, o deputado não tem tanto êxito em suas ações ofensivas. Mas fala. E, à sua maneira, trabalha.

Romário é mesmo único. A quem mais Johann Cruyff definiu como “o gênio da grande área”? Em quem mais Tostão viu “um fenomenal centroavante” Quem Diego Maradona pôs ao lado de Van Basten como os maiores atacantes que viu? Que atacante Eduardo Galeano comparou a um tigre que, vindo de região desconhecida, “aparece, dá seu bote e se esfuma’; deixando a bola nas redes contrárias? Por tudo isso, tanto o personagem como o herói do tetra jamais deixaram de ser Romário.